Sexofobia - O medo do poder feminino
publicado por Prem Ragini
Estamos muito distantes dos tempos em que a Igreja Católica Apostólica
Romana permitia relações sexuais apenas aos casados, exclusivamente para a
procriação, e o ato ardente era considerado grave pecado da carne. O sexo era
temido como uma peste. Não se falava em sexo a não ser por metáforas. Também
estamos distantes das primeiras décadas do século XX, quando as professoras
assinavam um rígido contrato que as obrigava a terem uma vida monástica e as
proibia de se casarem. O lugar de mulher era em casa e moças casadoiras deveriam
se manter ‘castas’ até o casamento. A sexualidade era rigidamente controlada.
Pouco se falava em sexo.
Hoje, são outros tempos, e estamos mais distantes desses períodos sombrios, em que o controle sobre a mulher era tão rigidamente exercido. Atualmente, após décadas de luta das mulheres, o avanço da liberdade feminina é um fato. Além disso, a sexualidade e o sexo se tornaram temas de pesquisas, teses, livros, palestras, discussões e assunto de conversa nos meios mais “liberais”, algo impensável antes da década de 60, década da contracultura, do amor livre, e um momento de avanço na conquista de direitos das mulheres. Se olharmos a nossa volta, veremos muitas mudanças nos relacionamentos e, aqui e ali, o patriarcado apresenta rachaduras em seus alicerces. A cada geração, experimentamos mais liberdade sexual. O sexo é o assunto mais discutido do século.
Medo da sexualidade feminina
Mesmo diante dos inegáveis avanços, a repressão sexual continua acontecendo dentro de nossos próprios lares, seja no silêncio sobre o assunto, seja na rígida contenção da espontaneidade das crianças e na proibição da masturbação às mulheres, pois é na família que a repressão tem sua base primal. Também veremos escolas proibindo o namoro dos adolescentes em suas dependências; as igrejas proibindo o sexo antes do casamento; campanhas de abstinência sexual implementadas pelo governo, e muitas outras iniciativas que parecem tentar conter o território de liberdade alcançado. A partir dessas instituições, a repressão se amplia, alcança toda a sociedade e fere também o homem, mas é sobre a mulher que ela se faz mais pesada.
O medo do sexo também continua disseminado em todas as instâncias da sociedade fálico-patriarcal: família, escola, igreja, ciência, meios de comunicação, governo e sistema. Embora esse medo do sexo possa ser abordado sob inúmeros aspectos, o foco desse artigo é a sexofobia como temor do corpo da mulher e de sua sexualidade, cuja origem remonta aos primórdios do patriarcado, há cerca de dez mil anos, quando o homem passou a controlar a sexualidade da mulher (antes
deusa livre para fazer sexo com quem lhe aprouvesse) como forma de garantir a fidelidade e a paternidade dos filhos legítimos, herdeiros de suas posses.
Sexualização e objetificação da mulher
Vivemos num mundo onde a pornografia difunde e consolida um modelo de relações sexuais genitalizado, opressor, violento, falocêntrico, machista e desconectado de sentimentos e emoções. Trata-se de um modelo de sexo animalesco, que anula toda potência de liberdade, de prazer e de felicidade, condenando a humanidade à insatisfação, à anorgasmia e à disfunção. Nesse mundo pornô, a mulher exerce o papel de coadjuvante, submissa e humilhada, a serviço do prazer do macho, como se fosse uma boneca inflável, desprovida de sentimentos e destituída de qualquer poder. Essa mesma sociedade, que também sexualiza corpos infantis e hipersensualiza o corpo da mulher como objeto de consumo, teme o sexo. Por isso mesmo reprime toda expressão da sexualidade liberta, compreendida como energia que busca liberdade, amor, contato, ternura e intimidade.
Podemos perceber a sexofobia se manifestar de modo instituído, naturalizando comportamentos como a repulsa pelo cheiro fêmeo; o desprezo pela vagina, manifestado em seus nomes pejorativos; a exigência de tricotomia; a padronização da genitália pequena e rosada; o horror ao sangue menstrual; a rejeição ao parto natural, embora mostre sem nenhuma cerimônia, o sangue derramado em mortes violentas e guerras pelo poder econômico. Isso demonstra que existe uma interdição à expressão natural da mulher, como bem comprova a censura à amamentação e à exposição dos mamilos na mídia, o que, aliás, é naturalmente permitido aos homens.
Diante disso, questiona-se, de onde vem esse medo? É o medo do poder
do feminino, medo de que a mulher possa ser livre, possa expressar seus
desejos, e descubra que sua força reside em amar a si mesma, reside em
conhecer o próprio corpo e ter prazer sem depender dos outros. Essas
mulheres sempre existiram e, ao logo da história, foram chamadas de histéricas,
libertinas e bruxas. Muitas delas foram punidas com o internamento em
manicômios, prisão domiciliar, enclausuramento em conventos e morte nas
fogueiras. Nos dias atuais, aquelas que usufruem de liberdade sexual, contrariando
as normas morais de “boa conduta’, são insultuosamente adjetivadas como
vagabundas, vadias, prostitutas, putas ou as loucas.
Orgasmo é poder
A sociedade teme que as mulheres usem sua energia para promover uma revolução sexual capaz de abalar suas estruturas podres e suas instituições vetustas, derrubando normas morais que servem ideologicamente à manutenção do patriarcado. Mesmo assim, aprendemos que o despertar dessa energia sexual passa pela experiência do orgasmo; um fenômeno físico, mental, emocional e espiritual que torna as mulheres indomáveis e poderosas. A escritora e cientista Mary Roach conta que “o orgasmo feminino surpreendentemente também aumenta os níveis de testosterona na mulher [além de dopamina entre outros hormônios], então o sexo torna as mulheres ainda mais difíceis de manipular, pois a testosterona mais que qualquer outro hormônio (...) influencia a libido da mulher e também faz que elas queiram transar mais. Portanto, o medo que o patriarcado sempre teve — de que, se deixarem as mulheres fazerem sexo e elas aprenderem a gostar, isso as tornará altamente libidinosas e ingovernáveis — é uma verdade biológica”.
A natureza presenteou a mulher não apenas com um órgão específico para o prazer, o clitóris, “mas a colocou em uma posição potencialmente de maior autoridade bioquímica que os homens por meio da satisfação da atividade sexual, sendo teoricamente mais capaz de obter certo nível de ativação de dopamina e opiáceos durante o sexo, o que causa um efeito específico no cérebro e até mesmo na personalidade (...) essa dopamina tornará a mulher — isso se a mulher e sua vagina não estiverem machucadas, reprimidas, feridas ou diminuídas — mais confiante, mais eufórica, mais criativa e mais determinadas — possivelmente mais do que uma sociedade dominada pela vontade dos homens deixaria. As feministas estão sempre tentando amplificar a ‘voz’ feminina reprimida. A serotonina (que é elevada com muitos antidepressivos) literalmente subjuga a voz feminina, e a dopamina literalmente a eleva." [Trecho do livro, “A Vagina”, de Naomi Wolf].
A cultura do estupro
Quando Naomi Wolf fala de vaginas machucadas, feridas, traumatizadas, é impossível não nos reportarmos ao estupro, expressão máxima da opressão e do ódio às mulheres, uma violência extrema tolerada pela sociedade, que desculpa o agressor e responsabiliza as vítimas, alegando vestimentas provocantes, sensualidade, trânsito em locais ermos, ausência de luta e comportamento “promíscuo” ou ‘recatado” determinante para sua aceitação ou não como vítima. Esses elementos que naturalizam o estupro restringem o número de denúncias e dificultam a punição dos agressores, e assim se define “a cultura do estupro”. Embora o termo estupro tenha ampla definição, atenho-me aqui à penetração forçada da vagina, que é a forma mais efetiva e cruel de subjugar a mulher, pois é exatamente esse o desejo de quem o pratica, utilizando muitas vezes de objetos, prova de que nem sempre o agressor busca sexo, mas, sobretudo, intenta impor seu domínio e despojá-la de poder.
Liberdade x repressão nas redes sociais
Por último, chamo atenção para as redes sociais, onde abundam informações sobre sexo. É impossível negar que existe bastante liberdade para falar de sexo, mas há um protocolo a ser seguido, como evitar certas palavras, ocultar os mamilos das mulheres e grafar certas palavras assim: “s.e.x.o”. É comum que a censura envie uma advertência, delete uma publicação, suspenda ou exclua uma conta, sob a alegação de que as postagens ferem as normas da comunidade. Nas redes sociais, existe bastante pornografia sendo veiculada, e diversas postagens de conteúdo machista, ofensivo às mulheres, mas as contas censuradas geralmente apresentam a sexualidade como o grande potencial de libertação, e o sexo como fonte de prazer e envolvimento afetivo-amoroso, em consonância com a visão do Tantra e de estudiosos da sexualidade como o psicanalista Wilhem Reich, o primeiro afirmar que a humanidade está doente por causa da repressão ao sexo.
A mesma mídia que tolera conteúdos pornográficos, misóginos e preconceituosos, exclui contas de terapeutas tântricos e outros profissionais que falam de sexualidade e, pasmem, certa mídia teve a desfaçatez de retirar uma postagem minha, sob a alegação de imagem imprópria: uma singela flor, de inúmeros tons róseos e escarlates, em que a natureza reproduziu lindamente a Yoni, a genitália feminina.
Por tudo isso, vejo que as mulheres ainda têm um longo caminho pela frente, na luta para vencer os grilhões de controle e repressão sexual com que a sociedade patriarcal tenta aprisionar nosso ser selvagem. Talvez eu não viva tempo suficiente para que possamos destecer o pesado manto da sexofobia que ainda está sobre os ombros femininos. Mas também acredito que, quanto mais mulheres forem tocadas pelo conhecimento ancestral do seu poder orgástico, mais e mais difícil será impedir a grave perturbação da ordem que nossos corpos livres são capazes de criar.
Prem Ragini é terapeuta tântrica e renascedora pelo Centro Metamorfose, com 07 anos de atuação.