Reflexões de uma professora
publicado por Deva Harischandra
Ao final de 2020 eu completo 18 anos lecionando História em escolas públicas. Entre erros e acertos, sem dúvida, aprendi muito e tive a oportunidade de crescer bastante como ser humano.
Fico contrariada quando ouço alguém dizer que a escola ainda é a mesma de séculos atrás, porque ao meu ver, não é mesmo. Pelo menos no sentido em que os estudantes das escolas em que trabalho têm a liberdade para trazer discussões sobre qualquer assunto que quiserem durante as aulas, podem se expressar, podemos rir e nos divertir juntos, há um espaço muito maior para compreendê-los e tratá-los como seres humanos em sua integralidade e não apenas como competidores que precisam se superar o tempo todo, porque precisam ser os melhores na competição da vida. Ou que só mereçam respeito se abaixarem suas cabeças.
Há professores que buscam tornar as aulas agradáveis, interessantes, dinâmicas e atrativas aos estudantes e recorrem às tecnologias como grandes aliadas para tanto. São acessíveis aos estudantes, se esforçando para que tenham qualidade no ensino.
A própria historiografia mudou bastante nos últimos anos. As crianças não mais estudam a História da mesma forma que eu estudei quando tinha a idade delas. Hoje trabalha-se as visões históricas dos grupos diversos e não mais somente as visões das classes dominantes. Nos colocamos todos como agentes históricos, responsáveis pela construção da História do lugar onde vivemos.
A escola tem sido conduzida na busca de ser um espaço cada vez mais distante da violência, da repressão, da instituição punitiva, que premia o subserviente e pune o espontâneo...
Mas claro que concordo que ainda há inúmeros entraves. Estamos muito distantes de ter a escola ideal a meu ver, que deveria educar para a liberdade e autonomia.
Trabalhamos em salas de aulas com um grande número de alunos, o que considero prejudicial à qualidade do ensino. Professores que precisam se desdobrar trabalhando por 2 ou 3 horários por dia para que consigam se manter. Escassez de recursos. Cobranças de conteúdos que muitas vezes não fazem sentido. Na grande maioria das vezes ainda cobramos que todos sejam bons nas mesmas coisas, não considerando as diferentes potencialidades e as inteligências múltiplas de cada um.
Nos dividimos entre valorizar as potencialidades próprias e a necessidade de prepará-los para que possam ter condições de terem bons resultados no ENEM futuramente, caso desejem.
Iniciei minha profissão ministrando aulas à noite, ainda cursava o segundo período da faculdade de História na UFES. Naquela época era raro ter professores formados na área em minha cidade. E ser estudante na área já era uma raridade.
Comecei muito aberta ao diálogo, muito liberal, muito imatura, imaginava que tudo daria certo assim. Logo percebi que para que as pessoas estudassem seria necessária uma outra postura.
Fui me tornando uma professora bastante repressora. Tive uma criação bastante dura por parte do meu pai e repressão não me faltara... E como a gente é bom em dar o que tem dentro de si, fui ficando cada vez mais repressora.
Sempre muito preocupada em trabalhar conteúdos que julgava serem fundamentais para que os estudantes pudessem chegar onde quisessem. Para isso fui grossa, malvada, perdi a oportunidade de conhecer os estudantes, porque não havia espaço para isso em minhas aulas. As turmas ficavam em silêncio. E eu trabalhava os conteúdos, ameaçava, chamava responsáveis para conversar como forma de punição...
Sempre fui de levar as turmas para participarem de aulas de campo, mas controlava o comportamento dos estudantes o tempo todo. Promovia teatros, mostras, feiras e ainda assim, eram raras as vezes que mantive maior proximidade, que deixei a máscara da profissional e fui um ser humano com as crianças. Lembro-me que já fui tão dura e controladora que evitava ao máximo que os estudantes saíssem da sala, mesmo que para beber água ou ir ao banheiro.
Recordo-me de uma vez que uma aluna me disse: “Nossa professora! Você sorriu!” E foi no mês de agosto, que eu dei um sorriso em aula na turma dela pela primeira vez...
Hoje tenho consciência do quanto isso não foi bom nem pra mim nem para os estudantes. Mas sei que era o que eu podia fazer no momento com a bagagem que eu tinha. Acreditava estar fazendo o melhor pra mim e pra eles.
Achava que devia ser respeitada unicamente pelo fato de ser professora. Quando me lembro disso, sempre me vem à memória uma cena do filme “O Labirinto do Fauno”, em que um personagem bem malvado fazia suas malvadezas com um médico que fazia um trabalho lindíssimo salvando vidas. E esse médico disse a ele algo mais ou menos assim: “Obedecer por obedecer, assim, só pessoas como você conseguem fazer!”
E é isso mesmo. Aprendi que não se impõe respeito. As pessoas podem ter medo, mas respeito é outra coisa. E que conquistar amor e respeito ao mesmo tempo é uma coisa linda, e que ocorre de forma natural. Aprendi que encontrar equilíbrio entre conseguir conduzir o trabalho entre a disciplina necessária para a aprendizagem e a liberdade é um desafio constante.
O Osho diz algo sobre a educação que faz muito sentido pra mim, nas páginas 172 e 173 do livro “A REVOLUÇÃO – Conversas sobre Kabir”:
“Temos que achar um tipo humano de educação no mundo; a educação que existe é muito desumana. Temos de achar formas para que a criança possa brincar ao sol e ainda aprender um pouco de aritmética. Isso pode ser feito – uma vez que sabemos que a aritmética não é tão importante quanto brincar ao sol; uma vez que o assunto foi decidido, então podemos achar formas. Um pouco de aritmética pode ser ensinada, e um pouco é preciso. Nem todo mundo vai se tornar Albert Einstein, eles não se preocuparão em brincar ao sol – sua alegria é a aritmética, essa é a sua poesia. Então é diferente; então é totalmente diferente; então o crescimento não é impedido e a culpa não é criada.
Eu mesmo nunca me interessei em jogar qualquer jogo em minha infância, mas ninguém me impedia. Eu estava mais interessado em grande poesia, estava mais interessado em grande filosofia, estava mais interessado em religião – esse era meu jogo, essa era minha brincadeira. Isso é outra coisa. Se alguém desfruta a poesia, deixe-o desfrutá-la, e se alguém gosta de trabalhar em uma carpintaria, deixe-o desfrutar isso – cada qual de acordo com a sua necessidade.
E não deveria haver uma avaliação sobre quem é superior e quem é inferior. O carpinteiro não é inferior e o matemático não é superior; o matemático está desfrutando sua preferência e o carpinteiro está desfrutando a dele. Se qualquer coisa tiver de ser dita, esta é a ideia – é que a pessoa jovial está certa e a pessoa triste está errada.”
Acredito que esse seja o caminho de fato, educar para que as pessoas sejam felizes, possam viver bem, se sustentar com o que de fato faz sentido pra elas, com o que de fato as traz alegria, vontade de viver.
Tive inúmeros conflitos ao longo desses anos em relação à profissão de professora. E só depois de muita terapêutica tântrica, compreendi que faz muito mais diferença conhecer os estudantes, compreendê-los, acolhê-los em determinadas situações, ter um olhar amoroso para com eles, dialogar e convidá-los a pensarmos juntos do que jogar a eles conteúdosdesesperadamente.
Compreendo que se aprende muito mais na aula de um professor em que se sente bem, se sente valorizado, se sente pertencente àquele local, se sente capaz e seguro para ser quem se é, se sente livre para partilhar o que sente e o que pensa. Seja o que for ensinado, muito melhor será compreendido se o ambiente for acolhedor, amoroso, de paz, de harmonia, de mediação, de escuta.
Hoje compreendo que ser professora é muito mais do que transmitir conteúdos. Que é um aprendizado constante, cheio de tropeços, erros e acertos. Que a escola deve ser um lugar de construção coletiva de conhecimentos, de partilhas, de trocas. Não mais um lugar onde uns mandam e outros obedecem. Ainda percebo o quanto culturalmente permanecemos ainda muitas vezes nesse modelo. Sei que não é uma coisa que acontece de uma hora para outra, mas um processo.
Mas fico muito feliz em perceber o quanto eu e muita gente que está comigo nessa caminhada, já mudamos nossos olhares sobre a escola nesses quase 18 anos e espero que nossos estudantes, além dos conteúdos trabalhados nas aulas, possam aprender que:
• São seres únicos e não devem se comparar a ninguém.• Que todos temos potencialidades e devemos valorizá-las.• Que padrões de beleza são apenas visões de mundo, que não precisamos fazer parte deles para sermos aceitos por nós mesmos.• Que somos seres humanos, portanto, imperfeitos. E tudo bem.• Que além da dedicação aos estudos e às outras responsabilidades da vida, é preciso descansar e nos ocuparmos com coisas que nos fazem bem ao corpo e à alma. • Que sempre há escolhas na vida e que podemos optar.• Que estarmos conectados com a natureza nos faz um bem enorme e que devemos cuidar dela para o bem de todos nós.• Que devemos cuidar de nós e dos outros, que cada um é muito importante no grupo.• Que faz todo o sentido alinhar o que pensa, diz e faz.• Que vivemos para sermos felizes, que a alegria é uma prece e que embora não possamos fazer somente o que nos dá prazer, dá pra fazer tudo o que precisamos com prazer.• Entre outras tantas coisas...
Agradeço a cada estudante, amigo e profissional da educação que passou ou que faz parte da minha vida e contribuiu para que hoje eu possa enxergar a educação de uma forma tão diferente da qual já enxerguei um dia.
Agradeço na certeza de que nesses quase 18 anos, muito mais aprendi do que ensinei. Aprendi na dor e no amor que educação nada tem a ver com controle, mas com liberdade. Nada tem a ver com mera transmissão de conhecimento, mas com troca contínua de saberes. Nada tem a ver com imposição, mas com interesse. Nada tem a ver com hierarquia, mas com círculo. Nada tem a ver com arrogância, mas com compartilhar. Nada tem a ver com autoritarismo, mas com confiança...
Gratidão!